[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo deste domingo (8/3)]
Tramitam pelos tribunais brasileiros 93 milhões de processos, 20 milhões dos quais no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A explosão da litigiosidade permite várias leituras. Para os otimistas, significa o despertar da população para os benefícios de um acesso ampliado ao equipamento estatal encarregado de solucionar conflitos. O povo descobriu o Judiciário e a ele acorreu com sofreguidão.
Para os realistas, é sintoma de enfermidade. Não pode ser saudável uma sociedade tão beligerante. Os números dariam a sensação de que todo o Brasil litiga. Pois excluídas as crianças, que em regra não demandam em juízo, e considerada a bipolaridade da ação judicial —autor versus réu—, todos os habitantes do país estariam a se digladiar em juízo.
Não é bem assim: 60% dos processos são de interesse exclusivo do governo. São Paulo, por exemplo, tem 12 milhões de execuções fiscais (cobrança judicial da dívida ativa do Estado e dos municípios). Ainda não se disseminou a noção racional de que cobrar dívida do governo não é função do Judiciário. A Procuradoria-Geral do Estado já compreendeu e avançou num trato mais sensato. Porém, há inúmeros municípios que continuam a atravancar os foros com milhões de executivos fiscais.
Outros campeões de litigância são os fornecedores de serviços essenciais, as instituições financeiras e bancos. A relação dos maiores litigantes não causa surpresa, mas sugere um trabalho de conscientização para que os preferencialmente demandados adotem alternativas de pacificação extrajudicial. Essa é a receita para tornar o Judiciário um serviço público eficiente, como determina a Constituição no artigo 37, ao contemplar os princípios incidentes sobre a administração pública.
Fazer Justiça não significa, inevitavelmente, ingressar em juízo. Ao escancarar o acesso à Justiça, o sistema foi tão prestigiado que se tornou quase impossível encontrar a saída. Afinal, sofisticamos tanto o modelo que chegamos ao quádruplo grau de jurisdição —juiz de primeira instância, tribunal, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal— com dezenas de possibilidades recursais. É o que explica a duração de mais de uma década para o trâmite de um processo.
O pragmatismo anglo-saxão formatou múltiplas opções para solucionar controvérsias independentemente de ingresso em juízo. O Brasil é tímido ao enfrentá-las. Mas avançou bastante ao prestigiar a conciliação, a mediação e a alavancar a arbitragem, velha conhecida dos profissionais do direito.
É urgente intensificar o uso dessa estratégia. Os advogados podem e devem contribuir para tanto, pois é dever inscrito no seu Estatuto de Ética e Disciplina tentar a conciliação antes de adentrar o Judiciário. Assim como é dever ético dissuadir a parte de promover lide temerária.
A advocacia, essencial à administração da Justiça, precisa ser consultada preventivamente, o que evitaria o surgimento de situações geradoras de processos. Ao assumir atuação proativa rumo à precaução e prevenção de litígios, o advogado poupará o seu cliente do prolongamento da angústia pela indefinida duração de uma demanda.
Edificar uma cultura de pacificação não atende exclusivamente à política de reduzir a invencível carga de ações cometida ao Judiciário. O aspecto mais importante é o treino da cidadania a ter maturidade para encarar seus problemas com autonomia, situação muito diversa da heteronomia da decisão judicial.
Embora chamado “sujeito processual”, o demandante ou demandado se converte, na relação jurídico-processual, em verdadeiro “objeto da vontade do Estado-juiz”. Este é que tarifará sua dor ou sofrimento, o valor de sua honra e de sua liberdade. Enquanto que na via conciliatória, o próprio interessado terá participação efetiva e obterá uma solução superiormente ética à decisão judicial. Afinal, fazer Justiça é obra coletiva, num Brasil em que a iniquidade ainda parece constituir a regra.
José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2014