No apagar das luzes do ano passado, a instituição, pelo Senado Federal, de uma comissão de juristas com a finalidade de elaborar anteprojeto de lei de arbitragem e mediação ensejou certa perplexidade no seio de nossa comunidade jurídica. Pairava alguma desconfiança quanto à extensão da reforma, bem como quanto à necessidade de ser modificada a Lei 9.307/96, em vigor há mais de 16 anos, consolidada pela praxe do ambiente negocial e acatada pelos tribunais brasileiros.
Todavia, assim como sucedeu com a própria Constituição Federal, as transformações sociais e econômicas, ao longo do tempo, sempre determinam novas exigências no plano técnico-jurídico. Diante do crescente e efetivo incremento da arbitragem como meio adequado de solução de conflitos, sobretudo no setor empresarial, afigura-se natural a vontade política em prol do aperfeiçoamento do instituto.
Instalados os trabalhos da comissão em abril passado, sob a presidência serena e segura do ilustre ministro Luis Felipe Salomão, houve absoluto consenso entre os seus membros ao ser, de logo, estabelecida uma barreira rígida para preservar os princípios e os fundamentos normativos que informam o texto legal em vigor.
A análise do anteprojeto, concluído no início deste mês de outubro e que ora já se encontra em tramitação no Senado Federal (PLS 406/2013), revela que, em linhas gerais, foi mantida a sistemática já consagrada. Contudo, além de alguns reparos formais e terminológicos, verifica-se que três alterações pontuais foram sugeridas, referentes à: a) ampliação subjetiva e objetiva da incidência da arbitragem; b) delimitação da atividade do juiz togado até a instituição da arbitragem; e c) maior liberdade das partes na indicação dos árbitros.
Observo que esta derradeira proposta de alteração do artigo 13 da lei vigente gerou franca discussão não apenas intra muros, entre os integrantes da comissão de juristas, mas também propiciou manifestação de inúmeros especialistas e de várias câmaras arbitrais. Não é preciso salientar que a questão foi analisada com a cautela que merecia.
De um lado, defendendo a redação original da lei, argumentou-se que a alteração legislativa atinente a aspectos procedimentais, disciplinados pelos regulamentos dos órgãos arbitrais institucionais, conspiraria contra a Constituição Federal, que contempla os princípios da menor interferência do Estado no setor privado (artigo 174) e, outrossim, da vedação à ingerência estatal no funcionamento das associações privadas (artigo 5º, XVII).
Nessa linha, também foi afirmado que a lista de árbitros constitui uma prática que possibilita às câmaras arbitrais examinar o conjunto de atributos pessoais, morais e éticos que compõem a reputação de alguém escolhido como árbitro, circunstância que confere legitimidade ao processo arbitral e consequente segurança às partes.
Fica claro que estes argumentos sugerem o receio de que a livre indicação dos árbitros, inclusive do presidente do painel arbitral, possa comprometer o prestígio e a seriedade do instituto da arbitragem.
Seja como for, é fato que em muitas arbitragens, sobretudo em boa parte daquelas que se desenrolam em São Paulo, a experiência tem demonstrado o hábito de que quando um determinado árbitro é escolhido, já se presume, de antemão, quem será o presidente, e vice-versa, quando aquele que, antes, fora apontado como presidente é eleito árbitro, já se sabe, com muita probabilidade, quem irá presidir o painel arbitral. Nestes casos, a lista de árbitros acaba sendo apenas “decorativa”. E isso, sem mencionar outras hipóteses ainda mais constrangedoras, de o mesmo profissional atuar ora como árbitro, ora como advogado, coincidindo, quase sempre, os idênticos protagonistas. A reiteração desta situação, que já se tornou verdadeiro “costume”, também tem chamado atenção e merecido incontáveis críticas negativas, a despeito da inegável idoneidade e capacidade dos árbitros.
Feitas as contas, não se alvitra qualquer inconstitucionalidade no regramento legal, obstando a existência de listas fechadas de árbitros. Lembro, a guisa de exemplo, que o artigo 15, § 4º, do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) prevê restrições subjetivas a que um advogado integre mais de uma sociedade de advogados; o artigo 1.085 do Código Civil exige quórum de mais da metade dos representantes do capital social para exclusão de quotista minoritário… Nem por isso estas determinações ope legis emergem contrárias ao texto constitucional!
Entre a discricionariedade das câmaras de arbitragem e a autonomia da vontade das partes, significativa maioria dos integrantes da Comissão de Juristas entendeu que esta deveria prevalecer sobre aquela.
Afinal, a própria legislação dispõe com todas as letras que o árbitro deve ser aquele da confiança das partes (e não das câmaras arbitrais!).
Daí, a evitar tal prática, a proposta de introdução do § 4º ao artigo 13 da lei em vigor, com a seguinte redação: “As partes, de comum acordo, poderão afastar a aplicação de dispositivo do regulamento do órgão arbitral institucional ou entidade especializada que limite a escolha do árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal à respectiva lista de árbitros, autorizado o controle da escolha pelos órgãos competentes da instituição. Nos casos de impasse e arbitragem multiparte deverá ser observado o que dispuser o regulamento aplicável”.
Desse modo, procurando conferir maior liberdade às partes, poderão elas indicar livremente os seus respectivos árbitros, cuja admissão, no entanto, fica subordinada ao controle das câmaras arbitrais. Esta novidade, longe de ter natureza procedimental, coaduna-se à própria índole ontológica da arbitragem, no sentido de assegurar ampla e benfazeja supremacia da vontade das partes.
Norteada pelo princípio da ponderação, a proposta em tela, de um lado, assegura ampla hegemonia às partes, e, de outro, não impede que as câmaras arbitrais possuam listas de pessoas qualificadas, de caráter meramente supletório, sobretudo para escolha do presidente, naquelas hipóteses (raras, diga-se de passagem) em que os interessados se omitem, têm dificuldade na escolha ou mesmo no eventual impasse dos árbitros na indicação do presidente. Ademais, os órgãos institucionais de arbitragem continuam dispondo da prerrogativa de vetar a indicação de algum árbitro que não reúna requisitos mínimos para desempenhar, com segurança e transparência, o importante papel que lhe cabe, evitando-se qualquer risco em detrimento do devido processo arbitral.
Cumpre esclarecer, nesse particular, que o dispositivo legal sugerido é expressamente defendido pela melhor doutrina estrangeira e, outrossim, segue orientação internacional, sendo em tudo análogo a regra constante, entre outros, do Regulamento de Arbitragem da prestigiosa Câmara de Comércio Internacional (CCI).
Em suma: a liberdade das partes constitui a pedra angular da arbitragem!
José Rogério Cruz e Tucci é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP e integrante da Comissão de Juristas para a reforma da Lei de Arbitragem.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 11 de outubro de 2013