Por Sergio Tostes
A Lei de Arbitragem atualmente em vigor foi aprovada após longo trâmite nas duas casas do Congresso, depois sancionada em 1996, com base em projeto inicialmente apresentado pelo senador Marco Maciel. Decorridos alguns anos de sua aplicação, é indispensável que a referida lei sofra uma revisão, seja para expurgá-la de alguns vícios de origem, seja para adaptá-la à realidade econômico-social do país, seja para escoimá-la de algumas deficiências que se tornaram visíveis em sua aplicação no curso desses anos. O senador Renan Calheiros, atualmente presidente do Senado Federal, pelo requerimento 702 de 2012, instituiu uma comissão presidida pelo ministro Luiz Felipe Salomão e integrada por juristas de escol para elaborar um novo anteprojeto de Lei de Arbitragem.
O requerimento do ilustre senador, sob certo aspecto, confundiu o instituto da arbitragem com o instituto da mediação, que, embora assemelhados, são distintos e se dirigem a objetivos e momentos também distintos na composição de litígios. Registre-se que há em andamento na Câmara Federal um Projeto de Lei (PL 92/2002) que trata especificamente do instituto da mediação. Uma vez que os dois institutos se dirigem a um mesmo fim, qual seja a solução rápida de divergências, principalmente contratuais, com o consequente desafogo do Poder Judiciário, alguns entendem que os dois institutos deveriam ser tratados em um único ordenamento legal. Até mesmo por esse traço comum e por uma questão de metodologia cientifico jurídica tudo recomenda um tratamento único. Isto é reforçado pelo fato de que o público leigo, a quem, em última análise, se dirige as leis, tem dificuldade de distinguir um instituto do outro.
A este tempo já foram superadas todas e quaisquer discussões quanto à constitucionalidade da Lei de Arbitragem, na conformidade de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 12 de dezembro 2001, sendo relator o mininistro Sepúlveda Pertence. Com todo respeito à liberdade de ação da comissão presidida pelo ministro Salomão, entendo que deve ser levado em consideração e análise o teor dos votos vencidos do relator ministro Sepúlveda Pertence e dos ministros Sidney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves quanto à inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 6º e do artigo 7º e seus parágrafos da Lei 9.307. Fique claro que não defendo a prevalência dos votos vencidos, especialmente considerando-se o cabedal jurídico daqueles que compuseram a maioria. De qualquer sorte, os fundamentos dos votos vencidos devem ser revisitados, à luz do fenomenal avanço tecnológico dos últimos anos que provocou inegável e forte impacto nas relações civis e comerciais. Um melhor alinhamento e uma minudência operacional poderiam propiciar maior segurança e perenidade ao importante meio de solução de conflitos, que é a arbitragem, da mesma forma como é a mediação.
Ademais, entendo que a linguagem da nova lei deveria levar em conta o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, de vez que a supremacia da lei no estado democrático de direito, no meu entendimento, não pode ser considerada simplesmente um direito de ação, exercitável ou não, conforme a vontade das partes, tal como decidido pelo STF. Isto porque as relações interpessoais, em toda e qualquer circunstância, envolvem um direito difuso, quando menos no tocante à formação de jurisprudência. Em suma, direitos e deveres de partes em litígio não podem suplantar questões de ordem pública.
Uma sugestão relevante para se estabelecer uma metodologia de trabalho é considerar aquilo que atualmente está em vigor como um ponto de partida para aquilo que se deseja atingir. Destarte, nessa contribuição partimos de considerações sobre alguns aspectos da Lei em vigor.
Impropriedades Jurídicas da Lei nº 9.307
É importante ressaltar, desde logo, que, nesta contribuição estou tratando da aplicação do instituto da arbitragem exclusivamente quando ambas as partes são domiciliadas no Brasil. Por óbvio, em se tratando de questões em que um dos polos esteja pessoa física ou jurídica domiciliada no exterior, certos comentários abaixo desenvolvidos não são aplicáveis. Esta vertente da arbitragem será tratada especificamente em outra ocasião. Esta relevante ressalva é essencial a tudo que é tratado abaixo.
Tendo em vista que o instituto da arbitragem não fazia parte da tradição do direito positivo brasileiro, muitas cláusulas da Lei foram “importadas” da legislação de outros países e, como tal, entram em choque com o ordenamento jurídico pátrio. Senão vejamos.
O artigo 2º permite que, no processo arbitral, as partes escolham a aplicação do direito ou da equidade. Trata-se de visível cópia do direito anglo-saxão, estranho à sistemática jurídica do nosso país, que erige as leis, muito especialmente a Lei Magna, como referencial para que sejam dirimidas as controvérsias. Daí decorre que a admissão da equidade, de forma vaga e sem definição precisa nos termos do ordenamento brasileiro, está em desacordo com os princípios básicos da segurança jurídica, égide do nosso sistema constitucional.
O parágrafo 2º no referido artigo 2º é, nesse sentido, expressão da mais absoluta heresia, na medida em que permite que as partes convencionem que “a arbitragem se realize com base nos princípios gerais do direito, dos usos e costumes e nas regras internacionais do comércio”. Com o devido respeito ao legislador de 1996, o disposto nesse parágrafo contraria frontalmente a Constituição.
A imprecisão terminológica atinge seu ápice no parágrafo único do artigo 6º que consagra, in fine, a gritante pérola: “… perante o órgão do Poder Judiciário a que ordinariamente tocaria o julgamento da causa.”
O artigo 4º, parágrafo 2º, dispõe que a validade da cláusula de adesão depende da concordância expressa do consumidor. Na prática, a arbitragem nas relações de consumo gera dúvidas e muitas vezes a parte hipossuficiente não tem de fato a possibilidade de apresentar sua manifestação de vontade. A arbitragem deveria ser abolida das relações de consumo.
O artigo 8º, parágrafo único, atribui competência ao árbitro para decidir sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha cláusula compromissória. Tal matéria é de ordem pública e, portanto indisponível. Pontue-se que contra a decisão do árbitro não cabe recurso ao Judiciário, o que fere o direito à ampla defesa. A nova lei deverá suprimir tal poder e prever que tais questões deverão ser levadas ao Poder Judiciário.
O artigo 13 estabelece que “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.” Nada mais vago. É indispensável que sejam definidas as qualificações dos árbitros ratione materia. O instituto da arbitragem se propõe a ser uma alternativa à solução de conflitos, até então somente possível através do Poder Judiciário. Desta forma, é indispensável que, além de especificações das qualificações técnicas em consonância com a matéria tratada, deve haver sempre entre os integrantes do Tribunal Arbitral, quando menos alguém com sólida formação e experiência jurídicas.
Artigo 22, parágrafo 4º: o árbitro não tem poder de coerção sobre as partes. O árbitro tem o poder de decidir sobre as medidas cautelares, mas não poderá impor às partes a efetivação da medida. Se uma das partes se recusar a cumprir, o árbitro deverá recorrer ao juiz estatal. A lei deverá dispor mais claramente sobre o procedimento a ser adotado pelo árbitro. A lei foi silente a respeito dos mecanismos formais para que o árbitro ou a parte busque a coerção visando ao cumprimento.
As medidas cautelares pré-arbitrais já envolveram grande discussão na doutrina e na jurisprudência. Isto se deve à omissão da lei quanto ao procedimento para se requerer tutela de urgência antes que seja instaurado o tribunal arbitral (nesse caso, o contrato conteria cláusula compromissória, mas o tribunal arbitral ainda não foi constituído). Decerto que neste ínterim podem surgir questões urgentes. Hoje, as partes costumam requerer a medida cautelar ao judiciário e, após a instauração do tribunal arbitral, o árbitro se manifesta sobre a medida concedida, confirmando-a ou revogando-a. Como a lei é silente, a solução encontrada foi construída com fundamento na doutrina, na jurisprudência e nos regulamentos das câmaras de arbitragem. A nova lei deverá dispor, expressamente, sobre as medidas cautelares pré-arbitrais.
Comentários de ordem prática
A arbitragem, tal como vem sendo exercida nos termos da lei em vigor, tem permitido que ocorra uma “reserva de mercado” por parte de alguns profissionais. Alguns nomes se repetem com uma constância maior que o desejável, num procedimento que deve ser erigido dentro dos relevantes princípios da imparcialidade. Com razoável frequência, alguém que tenha funcionado como árbitro em uma determinada questão apresenta-se como advogado em outra questão, na qual um companheiro de arbitragem naquela questão é também árbitro nessa outra questão. A Lei deverá prever uma separação nítida entre as funções de árbitro e advogado.
At last, but not least, algum critério deve ser estabelecido para que o uso do instituto da arbitragem não seja desvirtuado em questões nas quais matérias contrárias ao disposto na lei brasileira sejam tratadas. A privacidade ínsita ao instituto da arbitragem não pode encobertar a discussão de matérias que configurem desrespeito aos princípios legais vigentes, tais como dívidas de jogo, contratos de gaveta, matérias de práticas financeiras e comerciais legítimas em outros países, mas não acolhidas como tal na legislação brasileira.
Desnecessário dizer a importância e relevância dos trabalhos da Comissão para permitir que nosso país seja completamente contemporâneo do presente e esteja preparado para viver o futuro de um mundo em evolução tão rápida como nunca se viu na história. Dou minha contribuição, como advogado militante há quase 50 anos procurando abrir um saudável debate sobre tão relevante questão.
Sergio Tostes é advogado, formado pela Faculdade de Direito da UERJ, Mestre em Direito pela Harvard University e pela New York University, advogado militante há 45 anos e sócio senior de Tostes e Associados Advogados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2013