Nas sociedades modernas, o Estado detém o monopólio da distribuição de Justiça. No Brasil, o denominado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, contemplado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), assegura a todos os cidadãos o acesso à justiça. E este — Direito à jurisdição — materializa-se por meio do processo, que constitui o instrumento de tutela jurisdicional efetiva.

O direito de acesso aos tribunais é uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, sendo, por esta razão, inerente à ideia de Estado de Direito (Canotilho).

Resulta deste postulado que nenhuma lei pode coarctar tal prerrogativa do cidadão, sendo manifestamente inconstitucional qualquer restrição imposta aos membros da comunhão social do direito que possuem de recorrer aos órgãos judiciais, tanto na esfera dos processos de jurisdição contenciosa, quanto naqueles de jurisdição voluntária.

É evidente que se faculta às partes, tratando-se de direitos disponíveis, a opção por outros meios adequados de solução dos conflitos, como, por exemplo, a arbitragem, instituída em nosso ordenamento jurídico pela prestigiosa Lei 9.307/1996. É o que se verifica também no âmbito da mediação extrajudicial facultativa, ou, ainda, na própria transação, como meio de autocomposição da lide, antes mesmo do ajuizamento da demanda.

Todos estes institutos, que não postergam, em hipótese alguma, o direito de qualquer interessado bater às portas do Judiciário, constituem faculdade dos jurisdicionados, que muitas vezes, diante da decantada intempestividade da atividade forense, preferem uma vertente potencialmente mais célere para por fim ao litígio.

É exatamente neste cenário que foi editada a Lei 11.441/2007, possibilitando a efetivação do inventário, partilha de bens, separação e divórcio consensual pela via administrativa. Extrai-se, com efeito, da justificação da proposta que acompanhou o respectivo anteprojeto que tal alteração legislativa visava a “conferir eficiência à tramitação dos feitos e evitar a morosidade…”.

A análise do apontado texto legal, que conferiu nova redação aos artigos 982, 983, 1.031, e, ainda, introduziu o artigo 1.124-A, todos do Código de Processo Civil, revela, de logo, que os interessados passaram a ter dois caminhos para a realização do inventário, partilha de bens, separação ou divórcio consensual: a) as partes podem formular requerimento perante o juiz togado, ou, se preferirem, b) preenchidos os requisitos legais, podem optar pela lavratura do ato por meio de escritura pública.

O legislador conferiu, portanto, na própria redação do artigo 982 (“poderá”) e do artigo 1.124-A (“poderão”), a faculdade de escolha. Ademais, recorrendo-se à interpretação teleológica denota-se claramente o caráter optativo destas disposições processuais. Aliás, à luz do supra referido princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, nem poderia ser diferente!

Dúvida não há de que, em passagem alguma da Lei 11.441/2007, revogou-se o direito que os interessados sempre dispuseram de obter homologação judicial do inventário, da partilha de bens, da separação ou do divórcio consensual.

Não obstante, tem sido sufragado o entendimento de que os interessados estariam obrigados a optar pela via administrativa, carecendo de interesse processual se escolhido o procedimento judicial. É o que se colhe, por exemplo, de inusitada e recentíssima sentença proferida em processo de inventário por um dos juízos de direito de família e sucessões do foro central da comarca de São Paulo, que, surpreendendo os requerentes, negou-lhes, por paradoxal que possa parecer, o direito de acesso à justiça, ao interpretar a Lei 11.441/2007 a seu exclusivo talante, a pretexto de “desafogar o Judiciário”, asseverando que este novel diploma: “veio permitir que inventários e partilhas, nas hipóteses em que todos os interessados sejam capazes e concordes, guardem elaboração através de escritura pública, em cartório extrajudicial, a qual constituirá título hábil, inclusive para o registro imobiliário, de acordo com o projeto de agilização, racionalização e desburocratização do Poder Judiciário, que constitui a finalidade do referido diploma legal. Nada obstante o referido estatuto não tenha expressamente determinado o fim da sistemática anterior, a melhor interpretação da legislação é no sentido de que, prioritariamente, deva o cartório extrajudicial ser o destinatário dos pedidos que atendam tais requisitos, reservando-se o Poder Judiciário, sempre, conhecê-los na hipótese de impasse ou dificuldade que impeça a solução da sucessão, da forma como pretendida pela Lei. A finalidade é o desafogo do Judiciário; a consecução dela poderá reduzir o tempo de tramitação dos feitos litigiosos e melhorar a qualidade dos serviços prestados, de forma a atender as partes com maior presteza nas questões em que o Judiciário deva realmente intervir. Diante do exposto, com fundamento na Lei n. 11.441/07 e no art. 295, III, do Código de Processo Civil, dando-se seguimento à nova ordem jurídica implementada e aos propósitos a que se destina, indefiro a inicial, devendo o interessado previamente requerer o inventário e partilha por meio de escritura pública, perante o cartório extrajudicial competente. Por consequência, julgo extinto o processo, sem julgamento do mérito, com fundamento no art. 267, I, do Código de Processo Civil…”.

Definitivamente, este ato decisório desponta inconstitucional, visto que disse mais, muito mais, do que o legislador pretendeu instituir (ubi lex non dixit non voluit), em flagrante desconformidade com o postulado da inafastabilidade do controle jurisdicional. Seria o mesmo que, havendo compromisso arbitral celebrado entre as partes, uma delas ajuizasse ação perante o juiz estatal. Se a outra não se opusesse, o juiz jamais poderia extinguir o processo e remeter os litigantes ao tribunal arbitral.

Ressalte-se que, a propósito desta questão, continua gerando enorme polêmica a exigência de prévia submissão dos litígios às comissões de conciliação, ex vi do disposto no artigo 625-D da Consolidação das Leis do Trabalho (Lei 9.958/2000).

Na verdade, cabe exclusivamente ao interessado avaliar, diante do caso concreto, o procedimento que melhor lhe convém. São inúmeras as razões que podem indicar a prevalência do inventário judicial sobre o extrajudicial, a despeito de serem as partes maiores e capazes e de haver consenso sobre a partilha.

Em algumas situações, por exemplo, no âmbito do Estado de São Paulo, o inventário pela via notarial é bem mais caro do que o valor das custas judiciais. Em outras hipóteses, as partes serão compelidas a trilhar o caminho judicial para poderem proceder à venda de determinados bens do espólio, cujo produto será destinado a quitar o imposto de transmissão causa mortis ou as próprias custas judiciais. Igualmente, o meeiro e os sucessores podem ter interesse juridicamente relevante no processamento do inventário pela vertente judicial sempre que houver necessidade de representação do espólio no cumprimento de obrigações perante terceiros (por exemplo: outorga de escritura de compra e venda de imóveis já compromissados) ou no recebimento de prestações de terceiros (por exemplo: crédito parcelados ao longo de anos), o que exige a nomeação de inventariante, prestação de contas, e pode, em determinados casos, perdurar por anos a fio, dependendo do tipo de atividade profissional que era exercida pelo autor da herança.

Aconselha-se, outrossim, a opção pela via judicial, por questões afetas à segurança jurídica, sempre que existirem credores do espólio que pretendam se habilitar para o recebimento de seus créditos; ou companheiros que não formalizaram a união estável por instrumento escrito; ou filhos não reconhecidos pelo de cujus, para os quais seja necessário reservar uma parte do acervo, enquanto tramita o processo de investigação de paternidade.

A despeito dos termos da indigitada Lei 11.441, subsiste, pois, manifesto o interesse processual do requerente em submeter o seu pleito ao órgão dotado de jurisdição.

Em suma: a sentença acima referida, lançada inclusive sem ter propiciado aos interessados qualquer chance de manifestação, simplesmente atropelou a garantia constitucional que lhes é assegurada. Mais uma vez restou configurado o arbítrio da “decisão-surpresa” em detrimento do direito material do jurisdicionado!

José Rogério Cruz e Tucci é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP e integrante da Comissão de Juristas para a reforma da Lei de Arbitragem.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2013

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