Embora traduzam uma matéria jurídica nova e recente, os pretórios brasileiros já estão recheados de precedentes sobre as complexas questões que envolvem os contratos de previdência complementar. Sabidamente, por força do seu alto relevo social, bem como por sua missão institucional de representar uma alternativa válida e eficaz às conhecidas limitações do regime oficial (INSS), o legislador elevou a previdência privada ao alto patamar constitucional. Sem cortinas, o artigo 202 da Constituição Federal de 1988, após consagrar a autonomia e sua complementaridade frente ao regime geral de previdência social, estabeleceu que os fundos de pensão devem ser baseados na “constituição de reservas que garantam o benefícios contratado”, sendo dever da entidade previdenciária assegurar ao participante/contratante o “pleno acesso às informações relativas a gestão de seus respectivos planos” (parágrafo 1º, artigo 202, CF).
Nesse contexto normativo, é possível constatar que os contratos de previdência privada possuem uma natureza sui generis que, embora firmados entre pessoas de direito privado, possuem um relevante interesse público e social, na medida que devem proporcionar uma efetiva e real proteção previdenciária aos aposentados e, assim, realizar o espírito superior da norma constitucional de garantir a subsistência útil e a dignidade material – e não, meramente formal – da pessoa idosa. Tanto é verdade que a lei especial sobre a matéria estabeleceu, expressamente, que a ação do Estado será exercida com o objetivo de proteger os interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios (artigo 3º, VI, LC 109/2001). E, se deve “proteger”, é porque existe o risco de os beneficiários serem lesados.
Pois bem. Se existe o risco de lesão de direitos, é provável que, uma vez consumados, os prejudicados irão atrás daquilo que entendem por justo. Pergunta-se, então, por oportuno: é possível o estabelecimento de cláusula de arbitragem em contratos de previdência privada? A resposta exigirá uma análise das normas e da jurisprudência que circundam tão interessante questão.
Talvez o grande desafio da arbitragem seja o de garantir a paridade de armas entre partes tão distintas
Inicialmente, merece ser destacado que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui entendimento sumulado no sentido da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às relações de previdência privada (Súmula 321/STJ). É verdade que tal entendimento causa muita chiadeira por parte dos fundos de pensão. Agora, se existe boa-fé e boas intenções, qual seria o problema de bem cumprir as disposições de proteção ao consumidor? A pergunta fica registrada para a teórica divagação dos doutos. Indo adiante, o fato é que a aplicabilidade do CDC às relações de previdência privada atrai a incidência da regra do artigo 51, VII, do códex consumeirista que tacha de nulidade as cláusulas que “determinem a utilização compulsória de arbitragem”.
Logo, seria de supor que a arbitragem, prevista na Lei nº 9307, de 1996, estaria vetada em contratos de previdência privada. Ocorre que, em recente decisão sobre a matéria, o egrégio STJ, assim, se pronunciou: “O artigo 51, VII, do CDC se limita a vedar a adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da celebração do contrato, mas não impede que, posteriormente, diante de eventual litígio, havendo consenso entre as partes (em especial a aquiescência do consumidor), seja instaurado o procedimento arbitral” (RESP nº 1169841/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 14.11.2012).
O precedente acima joga novas luzes e possibilidades nos contratos de previdência privada. Conforme bem decidiu a colenda Corte superior, o CDC apenas veda a adoção prévia e compulsória do compromisso arbitral, ou seja, não há impedimento para o estabelecimento posterior, consensual e facultativo da arbitragem. Em outras palavras, os contratos e regulamentos de planos privados de previdência podem estabelecer que, na eventualidade de conflitos de interesse, as partes – por meio de oportuno, legítimo e escorreito acordo de vontades – poderão escolher a via arbitral como instância de equalização das divergências jurídicas potenciais.
Talvez o grande desafio da arbitragem em previdência privada seja o de garantir a paridade de armas entre partes tão distintas. Afinal, de um lado, temos os gigantes e poderosos fundos de pensão; do outro, apenas pequenos e modestos aposentados. A vida ensina que os poderosos sempre querem mais poder e têm uma atração praticamente irresistível em pisar nos mais humildes. Agora, em juízo judicial ou arbitral, o que vale e o que deve valer é a lei e Constituição. Aqui, no império da legalidade, os pequenos ficam grandes e, assim, tornam-se aptos a conceder um pouco de humildade aos que pensam que tudo podem.
Fonte: Valor Econômico